29 março, 2009

Louva-a-deus

O que me fez ser assim,
leve que nem sei de mim,
em fogo com a pele acesa,
bicho fome em natureza,
como louva-a-deus amando a presa?

O que me fez ser assim,
pouco de morte,
instinto, razão,
forte e invencível
como dragão da Disney,
doce e suave como o guri
com fuzil caçando gente
no morro ao lado daqui?

O que agora me faz
ausentar-se em mim,
sem afirmar ou negar desejos,
fúrias,
como se o peito
explodisse
sol de carro-bomba,
como as flores que cheiro
polens rudes de aromas,
pó, aço corte fosse termo?

O que me faz ser assim,
inquieto, controverso,
carregando armas
escondidas em versos,
beijando na boca e mandando
pro inferno?

(P. Cruz)

16 março, 2009

Palavra

Diante de mim
por um triz passou,
e dei-me conta...
imaginem,
essa mulher
é sombra,
nas sombras.

Mas, deixe de conversa fiada
que falar é prata
e o silêncio ouro;
o touro é
arena,
a carne é
mente,
e a boca
é banguela
sem dente.

(P. Cruz)
Febre

Às vezes perguntamos
de súbito:
- Guirlandas e cafés?

- Florestas e perfumes,
crenças e
iconoclastia,
fatos e profecias?

- Sedução e ser,
fome e fatio?

(P. Cruz)

15 março, 2009

Amtrak Blues

Alberta bonita e voz aberta,
aletas afinando o swing.
O crochê trançando o trompete,
acústicos passos do baixo,
acorde cheio notas simultâneas piano,
a vassoura varrendo o pó de estrelas
nas cordas de vísceras em si.

Velha alegria lenta fulga
de sustos e calmaria.
Notas sujas simulando
pixaim louro,
diademas de ligaduras,
claro grave da clarineta
e pentagramas que soam carne,
um improvisado passeio
no meio da tarde.

Coração na linha reta,
filigrana rítmicas e melódica,
carícias de intervalos
aveludados menores,
que cinco cents ásperos
maiores de vinil
negro riscado e pulo
valem sol de ária Alberta.

(P. Cruz)

14 março, 2009

(Aynur Dogan)

Música para Maria Augusta cantar

Tenho um segredo guardado,
não sei se conto pro meu namorado.
Tem um cara que mora do lado de casa
e acho que ele é um mago.
Manda duendes me trazerem jóias bem finas.
Me manda perfumes do Oriente, sedas da China,
violetas e jasmins.

Tenho um segredo guardado,
não sei se conto pro meu namorado.
No jardim do mago de noite tem música
e gente um tanto esquisita...
Uma indiana que toca cítara e canta shiva shivaia,
um gênio de lâmpada belo, limpo e bem arrumado,
que tem fogo nos olhos e doce nos lábios.

Não sei se conto pro meu namorado,
que um dia estive escondida na festa do bruxo na casa do lado.
Caí na farra, dancei feliz, até cair e ri feliz por ri (de bobeira).
Não sei se conto que estou meio apaixonada,
pelo cara que tem cheiro e gosto de vinho na boca,
que usa uma máscara negra e do amor é escravo.
Por um cara que quer ser meu namorado
mas, é prisioneiro
na torre do mago.

(P. Cruz)

07 março, 2009

Herança

Algumas pessoas estão mortas,
quer dizer, não nos pertencem,
foram-se e adeus.

Algumas, outras nenhumas,
estarão aí
como se a morte
às conduzissem pela coleira,
na mão da reza.

Desaparecem
e fim.

Com elas vivemos,
onde se movem nos movemos,
donas dos nossos bons sonhos,
esperanças e fortuna.

Por elas morremos,
um pouco de vez,
sem alarde,
anúncio,
em silêncio,
de pouco a cada vez
imperceptivelmente.

(P. Cruz)
Portugal

Vou pra bem longe,
depois do Atlântico
quântico.

Pra sempre.

Uma terra distante o quanto,
esquecida de si.
Quantas
pedras negras às ondas?

Mente torrente mar sem fim e volta,
mente vigorosa,
imantada ao espírito
que pertence ao futuro,
possível,
de vontade e conquistas.

(P. Cruz)

01 março, 2009


Interior

Depois, não vou ver
da minha janela
o vento virar ao avesso
o guarda-chuva
do menino negro
carregando livros.

Da minha janela
não verei mulatas,
pela calçada de sol clara em neve,
arrastando havaianas sandálias.

Não sentirei o sabor
do cipreste
enfeitado de chuva,
ou saberei captar a imobilidade
do trailer preso à árvore,
branco velho de ferrugem,
com as rodas
pousadas,
aros na grama.

Não caminharei com a imaginação
na superfície do papel de bala
atirado janela afora,
203 andar de cima,
pela garota apaixonada
pela florida minissaia
da negra passeando gostosa
com seu cão e sem dono.

Depois, com minha janela
fechadas persianas,
não saberei contar de memória
a vida que acontece lado de fora.
Serei mais triste, virtual, seco,
menos fantasia, pobre humano.

(P. Cruz)

Tortura

Pode o homem posto a ferros,
acorrentado, torturado, usado ao sórdido,
com o coração dado de devorar ao vazio,
visitado pelo medo,
açoitado pela dor,
dilacerado pelo sono,
com o desespero lhe roubando a alma,
a honra retalhada por unhas de ferro, dentes afiados e boca suja,
o corpo pulsando em mãos imundas,
a misericórdia lhe negando trégua,
a crueldade vociferando palavras podres,
a crueldade vociferando palavras
de amizade, amor, calma, dano,
o horror lhe abrindo janelas ao insano
ao insano indizível insano,
pode esse homem, posta de carne, servir ao humano?
O que resta pode ainda ser chamado homem?

(P. Cruz)