Hoje é
sábado e meu pai está vivo. Sua voz soa no vento. O coração contra nuvens é raio
que corta o véu da chuva. Hoje não é o dia dos mortos adormecido no pouso seco
da flor sobre o pó da estiagem em língua de fogo.
Agora posso
bater à porta, entrar em silêncio e ouvir a melodia efêmera do sol nas cortinas
da sala. A casa está cheia de vozes que não soam, de cheiros que pertencem ao
vazio, de lembranças que rodopiam em transcendência, de risos que ricocheteiam
nas pedras da memória.
Ananda, o
que vê no jardim? É meu pai em pé? Ou pó misturado à chuva? O vão da sala, o
portal da varanda, o bruto da pedra, a sombra da árvore florida iluminando o
sol que se ausenta?
Casa do
real, cômodos de portas cerradas e fotografias perdidas no quarto contíguo ao
fim do mundo. Nesse silêncio as vozes falam de amor em sussurros, de alegrias
em sorrisos tímidos, de medos entre dentes, de dor em gemidos abafados, de
esperanças em monólogos duros, de amizade em grave pausa.
Ananda, o
que vê além de impermanência e desejo? Hoje é quanto tempo?
(Pedro Cruz)