24 março, 2014


Hoje é sábado e meu pai está vivo. Sua voz soa no vento. O coração contra nuvens é raio que corta o véu da chuva. Hoje não é o dia dos mortos adormecido no pouso seco da flor sobre o pó da estiagem em língua de fogo.
Agora posso bater à porta, entrar em silêncio e ouvir a melodia efêmera do sol nas cortinas da sala. A casa está cheia de vozes que não soam, de cheiros que pertencem ao vazio, de lembranças que rodopiam em transcendência, de risos que ricocheteiam nas pedras da memória.
Ananda, o que vê no jardim? É meu pai em pé? Ou pó misturado à chuva? O vão da sala, o portal da varanda, o bruto da pedra, a sombra da árvore florida iluminando o sol que se ausenta?
Casa do real, cômodos de portas cerradas e fotografias perdidas no quarto contíguo ao fim do mundo. Nesse silêncio as vozes falam de amor em sussurros, de alegrias em sorrisos tímidos, de medos entre dentes, de dor em gemidos abafados, de esperanças em monólogos duros, de amizade em grave pausa.
Ananda, o que vê além de impermanência e desejo? Hoje é quanto tempo?

(Pedro Cruz)