29 outubro, 2009

Pássaro é árvore

Encontrei um pássaro em agonia caído no chão da varanda de inverno. Chocou-se contra a janela. Suas asas vestidas de sangue e vidro. Esvaia-se no ladrilho colorido em mosaico de geometria em cacos; iluminado pela luz que escorria do contorno vazio da forma moldada no vidro estilhaçado - facho em foco - sólido cheiro de sangue.

Um pássaro negro que eu desconhecia. Quase feto rompido do ovo, mesmo que em aparência não o fosse. Um borrão no chão, letra quase ideograma, talhe rupestre, signo jungiano, quase folha negra que tentasse a vida em estertores cômicos. Lenço negro caído do traje bege de linho gala do senhor francês que pinta negras. Faixa de luto caída do braço do velho escravo liberto com seu terno amarrotado cheirando a navio e mar.

O pássaro a morrer. Coração pulsando em extremo, fugindo da calma da morte.

Tomei-o nas mãos com cuidado. Abriu as asas tantalizando vôo inútil.

Meu gato observava por detrás de óculos enormes de aros sem lentes.

Morreu.

Plantei-o no jardim e todos os dias rego seu tronco de carvalho que voa ao céu, inusitada árvore. É meu totem, pacto com o inesperado. Árvore-pássaro que de noite, nos sonhos, decifra aves, vôo e sementes.

(P.Cruz)

25 outubro, 2009

Teia quântica quase

Um objeto, palavra, substantivo, sentimento, idéia, não sei. Têm coisas que são coisas sem palavras, forma, cheiro, sabor, cor peculiar, ignoro. Como descrever isso que não é. Nem sei se compensa tentá-lo. Ocorreu-me algo se movendo sinuoso sob o chão sólido por instante líquido. Um azul de céu claro sem nuvens, se movendo como se fosse ventre parido que se espreguiça. Um verbo sem ação existindo sempre, na fronteira do tato, a quase toque ou roçar de pálpebras sonolentas.
Algo que se esconde meio sono, sonho, vigília ou mente zen alerta. Parece que tem alma sem tê-la, isso é certo. Um meio entre pergunta e resposta na ponta da língua que não vem. Se movendo na mente como surpresa que tarda, se atrasa indefinidamente.
Existe a quase alegria, saudade, de alguém sem identidade, nome, ou olhos sem pálpebras. Não chega a ser névoa, pois quê, mais pesado. Não flexiona em gênero, cardume de fogo, luz ou imanência. Dar-lhe palavra é negar-lhe. O nome é sua morte, um signo sua negação. Suave como giletes agudas e doce como o gosto do ar na fome.
Descobri sua não existência existente numa tarde de maio, apesar de, já bem antes, desde muito sem que eu soubesse, saber-lhe a ausência.
Está sob tua pele, sob a palavra pele, quase no tecido do medo, entremeado na epiderme da compreensão. Ali próximo, onde a morte se acasala com o riso e pare o tempo suspenso.

(P.Cruz)

19 outubro, 2009

Seringas sibilo de balas

Não sei por que você afirma que Bach não é melhor que Wagner e suas Walkirias cromáticas. Ou que o trompete limpo de Sir Daves Jr, Miles é menos expressivo que a fase do trompete metálico elétrico, ou que Cassandra Wilson tem a boca suja próxima ao ouvido de Chet Baker sussurrando frases de banheiro e seringas.

Faz-me rir ouvir que Satriani tem mais nós nas juntas dos dedos que uma corda macia de Joe Pass, pois me parece que Horowitz é quase Deus e o Menezes do cello é quase anjo banido do paraíso para a caatinga de bois, paus e pedras.

Ouvi de você, certa feita, que Teresa Salgueiro é paixão avassaladora a se doer quase como a expressão mágica do John Willians de Alhambra.

Disse-me um parvo – claro, não você - que a dor tem som do movimento primeiro da Quarta Sinfonia do surdo Beethoven e coração batendo no ritmo das bombas francesas explodindo na sua cabeça, e isso é um riso esgarçado de triste troça.

Nada disso apreendo nas notas da música, a não ser o vagar humano da vida através de sons combinados. O ritmo é o espocar monótono das armas pesadas dos morros do Rio ou a corda única de Nana Vasconcelos a não melodia de João Gilberto o Uakti de vidro em cacos. Ritmo é Charles Mingus e a caixa de fósforo de Nelson Cavaquinho.

Minha amiga me disse que música é fuga do real.

A mim me parece o contrário quando estou a ouvir Sir Coltrane, John e suas ampolas cheias de chaves e agudos crus e graves de gengivas quebradas e maldição branca.

É claro que letras de músicas cantadas de mar e caipira na língua de Vinícius não é poesia. E deveria? Quem se importa com uma só nota repetida de Beethoven ou num samba de nota só vagabundo ou com os rios de métrica de Camões, fábulas de Homero, ou metáforas de Pessoa? O tinir da moeda no balcão de pedra do bar da esquina, os passos de salto alto na calçada, o sibilo de balas riscando metáforas na janela do MoMA?

(P.Cruz)

13 outubro, 2009

Clara na Siciliano

“...Era o vazio o que me esforçava por saber. O inanimado das estantes, luzes, máquinas, quadros, fotos enorme de escritores estrangeiros, cartazes de marketing.
Numa outra dimensão talvez não existíssemos, ou só fonte de calor, magnetismo, energia psíquica, cheiro. A loja é sólida, semivisível ou invisível a nós. Pertence à outra ordem de eventos que eu procurava apreender.
Isso a respeito de uma conversa com o Carlos que me disse que era realista, só enxergava a realidade, com os pés no chão. E eu tão névoa, ectoplasma, vendo o bom das coisas e das situações, o que certamente era tolice da minha idade, apesar de estar um pouco alta por cima de um salto imenso pisando o éter da caipirinha de vodka no meio da tarde.
‘O senhor procura alguma coisa?’ disse a vendedora ao homem que o tempo todo me comia com os olhos. ‘Não, nada’ disse voltando pra ordem real das coisas e pra moça, acho nissei. ‘Algum livro em especial?’ com expressão indisfarçável de número de vendas. ‘Se precisar eu falo!’ - convencendo-se a não trair impaciência. ‘Meu nome é Clara, qualquer...’ alguém chamou e ela foi atender, completando a frase com um gesto como se ele entendesse o resto. No terminal de consulta encontra: - A Ascensão de Prometeus! Robert Anton Wilson! – lê em voz alta, - Ana ainda deve amar o Jorge. Velhas lembranças... – falando sozinho pra tela que cheira a queimado.
Acho que gosto como ele me olha. Sinto seu olhar passear pelas minhas pernas, coxas, bunda... Nossa que coisa sem nexo.”

(P.Cruz)

10 outubro, 2009

. . . 1

Prá que precisa
O poeta de poesia?
Se a vida,
Com mais valia,
Discorre em versos
A morte que se
Anuncia?

(P.Cruz)
. . . 2

De quê se queixa
O poeta ao tempo?
Todavia tarda-se
O que seria.
São os riscos rimas
Efêmeras,
De que o poeta
Se faz sem poesia?
Se desfaz em rima
O ritmo, a quadra,
O decassílabo
A palavra
Perdida?
De quê suor de pedra
Faz o poeta
Vida?

(P.Cruz)