23 setembro, 2008


Mini Conto 01

- Sabe aquela menina que gritava ao microfone palavras obscenas que por acaso rimavam?
Odiava o pai. Saia com todos os caras, todas as taras.
Dentro dela uns cachorros estavam em guerra.

- Sabe do garoto que ganhou um sax dourado, botões de madrepérolas? Aprendeu escalas, marcar tempos no pulso do coração. Mas a música não causava o mesmo prazer que exibir-se para as garotas com sua poderosa clave. Elas o achavam o máximo. Cansei. Deixei-o à má sorte de fama, drogas e sentimentos em estilhaços. Tem coisas que não se aprende. Nem hoje nem sempre.

(Pedro Cruz)

I Ching

Joguei três moedas no ar,
vai saber se você me ama.

Joguei por seis vezes as três,
seu amor no hexagrama.

Vai saber ser yin ou yang,
vai saber que você sem saber
no futuro me ama.

(Pedro Cruz)


(Presságios)

Pedi à minha terapeuta
que formulasse
uma aparição mágica,
que me curasse
de crua insônia,
mas seu dogma
era quase mentira insana.

Pedi ao músico de rua
que tocasse sua história,
que me ensinasse
a amar amando,
mas seu canto
parecia rubricas de presságios,
gotas d’água no nada pingando.

Pedi ao meu santo
proteção e benção,
que me livrasse
de mandinga e quebranto,
mas ele me mandou à festa
dizendo que reza não se faz rezando.

Balas perdidas roçaram
minhas cortinas
na calma do dia
abatendo leopardos
pintados, nigerianos,
então que planos são mapas
e o real é mais pro lado do espanto.

(Pedro Cruz)

16 setembro, 2008

Van Gogh
“- Girassóis! Ouvi o pintor sem orelha gritar de dentro do mar.”
Eu estava no convés a escrever ditados.
“- O que tens a dizer em tua defesa mar maldito?
- Por que te cala quando se exige tua palavra de céu?
- Vento, por que não rasgas as velas amarelas do sol?
- Sol, quem te amarrou as asas presas à pele do mar?
- O que sussurras entre silêncios, ave da morte?
- O que queres dizer desse sangue de cordas coagulado nas mãos, marinheiro tempo arrastando pela areia o navio do deserto?
- Sono, não roubes a pena que colhi na China enquanto um anjo era chicoteado no pátio das culpas pelo leve descuido de perder ouro das asas.
- Escriba, por que talhas na pedra leões a suplicarem por águias e vôo?
Como mantive o silêncio, insistiu com voz de urgência:
- Escriba insano, viu o jardineiro que se embriagou de cores e se fez escravo da vida e senhor da morte?”

(Pedro Cruz)

05 setembro, 2008


(De novo você)

Bobagem,
novos filósofos preferem a dança,
novos santos performance,
poetas multimídia concretos, arame,
as mulheres novos versos e belos panos.

O rock velhas estrelas cinqüentonas,
a política guerra sempre e sangue,
a arte persona e valores na conta,
seu novo médico deus e muita grana.

Os psiquiatras novos xamãs e fórmulas,
os agentes econômicos novas velhas apostas,
a moça um virtual namorado,
os novos cientistas caos, clones e acasos.

Eu de novo te procuro, lábios, nudez, reentrâncias,
mas nada antes é como era sempre,
lânguida pele, língua, ritmos, dança.

(Pedro Cruz)

01 setembro, 2008

Tortura

A partir da divulgação das prisões secretas americanas, transformadas em laboratórios de tortura, vale um fato óbvio. Do lado que nos cabe - neste latifúndio que se chama Brasil - merecemos respeito, afinal também torturamos, e muito.

No passado, pretos, escravos, índios e judeus expatriados - negados à acolhida respeitosa. Há alguns anos, por diferenças políticas, torturamos médicos, filósofos, escritores, músicos, estudantes, artistas, religiosos. No presente a tortura é menos seletiva, invisível e menos óbvia. Tipo pobre em cadeia, meninas estupradas e seviciadas - com a indiferença do Estado - garotas escravas em casas de patroas malucas, garotos do tráfico por facções rivais, e um resto de miséria que justifica nossa barbárie e insolúveis diferenças culturais e sociais. Faz parte do show.

Assim é simples assim. Somos bárbaros. Dúvida? Não temos idéia de nossos pequenos e endiabrados atos cotidianos, silenciosos e injustificáveis.

Tomando emprestado ao Hélio Pelegrino, nossas diferenças podem ser levadas a extremos e ainda assim as justificaríamos. Persiste atual o espírito da tragédia grega - por uma bela Helena somos todos gregos e troianos. A crueldade é mãe de nossas doenças, que não se curam com prozac, esctasy, viagras, anestésicos psíquicos ou congêneres.

Agora, justificar atrocidades com leis e embasamento jurídico-religioso é remetermo-nos de volta às cavernas. É aceitar o fanatismo, intolerância, ódio, percurso tribal de extermínio, genocídio, posse territorial, exercício desumano do poder, infâmias e covardias. Isso vale para nós tupiniquins ou gringo ‘cara-pálida’ de qualquer espécie.

O homem é senhor de seus atos e deve ser responsabilizado pelo Estado civilizadamente constituído, justo e humano! Se o Estado é conveniente com torturas é criminoso - citando o que se diz por aí a boca grande. O que é muito sério e requer reflexão acurada, sem concessões ou complacência.

Não há lições morais neste texto, mesmo que se insista que sim. A constatação mais imediata é que vivemos numa época de pesadelo e horror. É só se colocar no lugar das vítimas. Pense na criança numa cadeia cheia de marmanjos enlouquecidos de ódio e testosterona. É de sangrar o coração.

(Pedro Cruz)

México

Se o amor bater a porta na minha cara
fico de cara amarrada,
não faço a barba, não como ou durmo direito
e de desejo na boca seco me amargo.

Se me virar às costas e sumir rua afora
fico mal com a vida,
não faço unhas no nervo da carne,
mas arranho a voz
até que sangre em silêncio, sem alarde.

E se me der um chute
fico a ver navios,
miragem no deserto,
não bebo e me enrolo
feto sem cama
dormindo em mágoas, quieto.

(Pedro Cruz)